História da Mentora Vovó Catarina
(Mas também conhecida como Dona Euzália)
(Texto enviado por Jéssica)
Os tambores tocavam o ritmo cadenciado dos Orixás, e nós dançávamos.
Dançávamos todos em volta da fogueira improvisada ou à luz de tochas ou velas
de cera que fazíamos. A comida
era pouca, mas para passar a fome nós dançávamos a dança dos Orixás. E assim,
ao som dos tambores de nosso povo, nos divertíamos, para não morrer de tristeza
e sofrimento. Eu era chamada de feiticeira. Mas eu não era
feiticeira, era curandeira. Entendia de ervas, com as quais fazia remédios
para o meu povo, e de parto; eu era a parteira do povo de Angola que
estava errando naquela terra de meu Deus.
Até que Sinhá me tirou do meu povo. Ela não queria que eu
usasse meus conhecimentos para curar os negros, somente os brancos; Afinal,
negro - dizia ela - tinha que trabalhar e trabalhar até morrer. Depois,
era só substituir por outro.
Mas Dona Moça não pensava assim. Ela gostava de mim, e eu, dela.
Fui jogada num canto, separada dos outros escravos e todas as noites eu
chorava ao saber que meu povo sofria e eu não podia fazer nada para
ajudar. De dia eu descascava coco e moía café no pilão. À noite eu cantava
sozinha, solitária. E ouvia o cantar triste de meu povo, de longe. Ouvia o
lamento dos negros de Angola pedindo a Oxalá a liberdade, que só depois
nós entendemos o que era. E os tambores tocavam o seu lamento triste, o seu
toque cadenciado, enquanto eu respondia de meu cativeiro com as rezas dos
meus Orixás. A liberdade, que era cantada por todos do cativeiro,
só mais tarde é que nós a compreendemos. A liberdade era de dentro, e não
de fora.
Aqueles eram dias difíceis e nós aprendemos
com os cânticos de Oxóssi e as armas de Ogum o que era se humilhar, sofrer
e servir, até que nosso espírito estivesse acostumado tanto ao sofrimento
e a servir sem discutir, sem nada obter em troca, que, a um simples sinal
de dor ou qualquer necessidade, nós estávamos ali, prontos para servir,
preparados para trabalhar. E nosso Pai Oxalá nos ensinou, em meio aos
toques dos tambores na senzala ou aos chicotes do capitão, que é mais
proveitoso servir e sofrer do que ser servido e provocar a infelicidade
dos outros.
Um dia, vítima do desespero de Sinhá, eu fui levada à noite para o
tronco, enquanto meus irmãos na senzala cantavam. A cada toque mais forte
dos tambores, eu recebia uma chibatada, até que, desfalecendo, fui
conduzida nos braços de Oxalá para o reino de Aruanda. Meu corpo, na
verdade, estava morto, mas eu estava livre, no meio das estrelas de
Aruanda. Em meu espírito não restou nenhum rancor, mas apenas um profundo
agradecimento aos meus antigos senhores, por me ensinar, com o suor e o
sofrimento, que mais compensa ser bom do que mau; sofrer cumprindo nosso
dever do que sorrir na ilusão; trabalhar pelo bem de todos do que servir
de tropeço. Eu era agora liberta, e nenhum chicote, nenhuma senzala
poderia me prender, porque agora eu poderia ouvir por todo lado o barulho
dos tambores de Angola, mas também do Kêtu, de Luanda, de Jêje e de todo
lugar. Em meio às estrelas de Aruanda eu rezava. Rezava agradecida ao meu Pai Oxalá.
Fui pra Aruanda, lugar de muita paz! Mas eu retomei. Pedi a meu Pai
Oxalá que desse oportunidade pra eu voltar ao Brasil pra poder ajudar a
Sinhá, pois ela me ensinou muita coisa com o jeito dela nos tratar. E eu
voltei. Agora as coisas pareciam mudadas. Eu não era aquela nega feia e
escrava. Era filha de gente grande e bonita, sabia ler e ensinava crianças
dos outros.
Um dia bateu na minha porta um homem com uma menina enjeitada da
mãe. Era muito esquisita, doente e trazia nela o mal da lepra. Tadinha!
Não tinha pra onde ir e o pai desesperado não sabia o que fazer. Adotei a
pobre coitada, fui tratando aos poucos e, quando me casei, levei a menina
comigo. Cresceu, deu problema, mas eu a amava muito. Até que um dia ela
veio a desencarnar em meus braços, de um jeito que fazia dó.
Quando eu retomei pra Aruanda, o que vocês chamam de plano
espiritual, ela veio me receber com os braços abertos e chorando muito,
muito mesmo. Perguntei por que chorava, se nós duas agora estávamos livres
do sofrimento da carne, então,
ela, transformando-se em minha frente, assumiu a feição de Sinhá! Ela era
a minha Sinhá do tempo do cativeiro. E nós duas nos abraçamos
e choramos juntas.
Hoje, trabalhamos nas falanges da
Umbanda, com a esperança de passar a nossa experiência pra muitos que
ainda se encontram perdidos em suas dificuldades.
Extraído do Livro TAMBORES DE ANGOLA de Robson Pinheiro pelo Espírito
Ângelo Inácio e Pai João de Aruanda.
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